01 novembro 2005

Pequenas descobertas

O HOMEM passou duas vezes, para lá e depois para cá. Mas sem se dar conta que um jornal estava caído no chão a toda a largura do corredor. À ida, o homem ainda conseguiu, sabe-se lá como, não pisar o papel, apesar de transportar um tabuleiro. No regresso, já com as mãos livres, foi em cheio: dois passos, duas pegadas bem nítidas na primeira página.
A situação passa-se num “self-service” onde, segundos antes, o proprietário do jornal não conseguira impedi-lo de escapar suavemente sob o sovaco. Entalara-o ali para poder usar ambas as mãos a encher uma chávena. Ganhou o chá, mas perdeu o jornal. Valeu-lhe alguém que passou, a seguir, e o ergueu do chão, entregando-o ao dono.
Dá que pensar: como é possível passar por cima de um objecto bem visível sem o ver ou, pelo menos, sentir que algo mudou na textura do solo que pisa? A resposta parece óbvia: falta de atenção, pois claro. Ou, se quiserem, uma distracção que é, em boa verdade, da mesma natureza da que leva um transeunte a chocar com outrem no passeio. A passar à frente de uma pessoa idosa na estrada para o autocarro. A fazer barulho numa sala de cinema. Ou a não parar o automóvel na passadeira de peões.
Se houvesse tempo e disponibilidade para suster o ciclo perpétuo das horas ou dos dias na grande cidade, muitos dos seus habitantes poderiam fazer pequenas descobertas, nada de espectacular ou milagroso, mas em todo o caso significativas. (…)

Carlos Pessoa, in Público

2 comentários:

Monalisa disse...

Penso muitas vezes sobre isto, é espantosa a forma como as pessoas andam numa espécie de anestesia. E o tempo passa e cada minuto em que se vive desta forma é perdido, sem registo de nada que o diferencie de todos os outros minutos.

Anónimo disse...

Best regards from NY! »